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É uma ótima questão
Mochilão 2.0
Dia 11:
- Uma senhora se aproxima do meu assento e começa a tirar cobertor e travesseiro, eu a ajudo e talvez isso a faça perceber que eu sou aberto a conversar
- Seu nome é Adma, tem 77 anos, nasceu na Bolívia, cresceu em Brasília e está voltando de Salvador depois de visitar seus netos de dois filhos que moram na cidade
- Ela então me conta em tom de brincadeira que só visita uma vez no ano e que passa metade da semana na casa de um e a outra semana na casa de outro pois avó perto de neto atrapalha a criação deles
- Ela foi professora alfabetizadora durante sua vida toda, me conta de um caso específico de um garoto que tinha bastante dificuldade de aprendizagem, por volta de uns 6 anos
- Nisso ela fala pra ele que ficaria na sala no recreio e que se ele quisesse poderia procurar que ela ajudaria ele no que tivesse dificuldade
- A partir de então ele passava os recreios com ela revisando as matérias e ensinando de forma particular a disciplina, com ele cada vez mais próximo dela
- Ele sempre foi um aluno extremamente fechado e retraído, quase assustado. Nisso um dia ela pergunta a ele por que ele era assim no que ele responde que queria contar pra ela mas que era segredo e que ninguém podia saber.
- Ela então faz uma caixinha com as mãos e coloca perto do ouvido, falando pra ele que poderia contar a ela porque depois ela ia enterrar a caixinha e ninguém nunca mais ia saber
- "É que meu pai bebe muito aí chega tarde e bate na minha e depois bate em mim"
- Aquilo parte profundamente o coração dela, decidindo então fazer alguma coisa
- Antigamente a entrega de boletins era feita diretamente dos professores pros pais, nisso quando ela vai entregar o boletim da mãe do garoto diz que precisa conversar com ela.
- A mãe dele então já começa a falar num tom defensivo "Tem alguma coisa errada com meu filho né? Ele só tira nota ruim"
- "Na verdade as notas dele melhoraram muito. Como professora posso dizer que ele é perfeitamente normal assim como qualquer criança, mas como mulher eu sinto que tem alguma coisa errada pela forma dele ser retraído. Posso conversar com você de mulher pra mulher?"
- A mãe do garoto então começa a chorar e a contar sobre seu marido problemático, que ela já não suporta mais dividir o mesmo teto que ele mas que faz isso só pelo bem das crianças.
- "Mas olha como isso tá fazendo mal a seu filho, no fim vocês todos tão sendo prejudicados"
- Ela então reflete e concorda, mas não sabe o que fazer porque não tem um lugar pra onde ir se divorciar dele.
- Dona Adma diz então que se ela quiser sair debaixo do teto do marido ela da um jeito de ajudar, que ela pode falar com uma pessoa que conhece pra segurar três meses de aluguel enquanto ela arruma trabalho
- Depois dessa conversa um mês de passa e então a mulher aparece na escola para falar com Adma, dizendo que não aguenta mais e que tá disposta a fazer de tudo pra sair daquela casa com o filho dela
- Adma então arruma uma casa e paga os três meses de aluguel adiantados, mas sem a mulher saber. Enquanto isso ela se muda e corre atrás de emprego pra conseguir sustentar ela e o filho. No fim da tudo certo e ela me conta sorrindo que até se mudar de Brasília a mulher tinha uma lanchonete grande e que eram amigas, dizendo "as vezes as pessoas só precisam de um incentivo pra encontrar nelas forças que nem sabiam que tinham"
- Conversamos mais um pouco e como já era tarde fomos dormir.
- No outro dia de manhã continuamos conversando bastante, ela me conta do seu divórcio bem jovem, como já morou em vários lugares, como adora viajar e sobre seus filhos que moram espalhados pelo país e até no exterior.
- Ela é definitivamente muito diferente do que você espera de uma senhorinha, diz que um dia visitou Vitória da Conquista, adorou e que decidiu morar lá. Vendeu tudo, alugou sua casa em Brasília e alugou uma casa mobiliada na cidade. Há três anos mora lá e diz que se quiser pode morar em qualquer lugar porque não tem nada que é apegada.
Mochilão 2.0
Dia 9:
- Tenho uma noite tranquila interrompida apenas por barulhos na rua, seguido por um estampido. Como depois do estampido houve silêncio, imagino que ninguém morreu.
- Levanto e vou fazer meu café, encontrando com dona Neuza na cozinha e começamos a conversar.
- Ela fala sobre a vida dela, sobre o passado, o presente e também me enche de perguntas sobre de onde eu venho.
- Confesso que foi uma companhia maravilhosa que adorei ouvir, tanto que o tempo passou voando.
- Meu plano era ir a missa na igreja de São Bento aqui do lado 10h mas hoje também queria muito encontrar com minha amiga Nath, considerando o temperamento de baiana impaciente dela que eu já havia testado no sábado demorando pra chegar em Salvador, eu decido aproveitar e ir junto.
- A ideia de Nath era ir pra praias mais afastadas e isoladas pra poder chapar despreocupada, mas devido ao preço do Uber estar absurdo ela muda de ideia e me leva pra praia do Farol da Barra.
- Ir pra um local turístico em Salvador me deixava um pouco receoso por estar levando câmera, mas Nath viveu a vida toda nessa cidade e por isso confiei nela.
- Ela era uma das pessoas que mais queria encontrar, nos conhecemos há anos e meio que nem lembramos mais quanto tempo faz. Eu a conheci em tempos muito difíceis na vida dela e nossa amizade perdurou enquanto ela firmemente fazia seu caminho pra fora deles, hoje tendo uma condição de vida infinitamente melhor.
- Alugamos duas cadeiras e um guarda sol e ela já começou seus trabalhos.
- Como boa maconheira que é já foi querendo me oferecer, mas honestamente eu fico tão imerso num estado contemplativo quando tô viajando que qualquer coisa que ameace alterar isso me parece extremamente errado. Só abro raras exceções pra pequenas doses de álcool em momentos muito sociais, como ontem.
- Ela então vai chapando e ficando com o riso solto, enquanto diversos ambulantes vão passando e oferecendo diversos produtos.
- A própria Nathalia já trabalhou com isso anos atrás e rapidamente os desarma com seu tom altivo e sotaque baiano carregado "olhe, mas faça preço pra uma suburbana que aqui não tem turista não, viu?" ganhando sempre descontos enquanto eu fico calado pra não estragar a negociação.
- Eu saco minha câmera e vou tirando foto de tudo ao redor, inclusive dela acendendo suas bombas; fotos que ela me faz jurar manter só pra mim pois ela prefere ser discreta em seu lazer.
- Ela fica curiosa sobre minha câmera, pede emprestado e sai fazendo alguns clicks que ficam incrivelmente bons e que fazem a mesma descobrir um novo super poder.
- Nathalia é uma das mulheres mais inteligentes e cheias de raça que conheço, qualquer coisa na mão dela vira um problema a ser resolvido que ela rapidamente acha um caminho e assim ela vai se apaixonando pela arte que produz com a câmera me mostrando toda orgulhosa suas melhores fotos.
- Enquanto isso ambulantes vão nos abordando de maneira muito respeitosa, muito mais respeitosa dos que eu conheci na praia do futuro em Fortaleza, por exemplo. Até os catadores de latinhas são educados e os donos das cadeiras e guarda sóis recolhem por vezes até o lixo que os visitantes deixam pra manter aquele ambiente agradável.
- Nath tem se dedicado a estudar marketing e começa a analisar comigo a abordagem de cada um deles, discutimos aspectos como simpatia, naturalidade, rapidez em mostrar o produto e até o quão diferente é o produto como o caso de um senhor que vendia cataventos de papel.
- Em algum momento ela solta "Sério Vini, eu penso muito em morar fora mas amo esse lugar. Olhe a moça que nos atendeu que tinha três dentes na boca ou aquele senhor ali vendendo picolé que não tem os da frente, tá todo mudo sorrindo e se divertindo no processo porque sabem que o que vende aqui é a simpatia. Quer saber? Vou tirar um dia pra vender aqui só pra ver se ainda tô afiada como eu era"
- Ela hoje é professora de programação, vive com a agenda lotada e cheia de projetos pra entregar. Mas ainda assim um desafio pra ela é um desafio.
- Eu dou um mergulho no mar, minha obrigação.
Mochilão 2.0
Dia 8:
- Escrever o texto pela manhã me fez demorar pra arrumar a mala e sair, peguei a estrada por volta de 10h
- Sábado é dia difícil pra carona, uma moça muito simpática disse que eu não ia conseguir ficar ali e me recomendou ir pra saída da cidade depois de um viaduto, o problema é que eu ia caminhar muito.
- E eu caminhei, parando ocasionalmente pra beber água e pedir carona mas sem sucesso.
- Cheguei por volta das 13h exausto na outra saída da cidade, mal comecei a pedir carona e uma van apareceu, entrei pois só queria ir pra um lugar melhor com uma sombra de preferência
- Depois de pegar as passagens o cobrador da van sentou do meu lado e começamos a conversar, seu nome era Gustavo e ele tinha 17 anos.
- Apesar de ainda estar terminando o ensino médio Gustavo já estava terminando de construir sua casa com o dinheiro que recebia trabalhando na van de segunda a sábado
- Ele passou horas me perguntando sobre como eram as coisas de onde eu vinha, se tinham frutas diferentes, os preços eram diferentes, era como se ele quisesse viajar nas minhas histórias
- Então a van parou em Pojuca e ele desceu comigo pois esperava outro motorista passar pra fazer a volta
- Ele me chamou pra um bar ali próximo porque queria tomar um conhaque de alcatrão com mel e limão, ele tava meio resfriado e era um remédio tradicional. Me ofereceu uma dose num copo americano e eu aceitei ficando com a cabeça leve e o peito quente da bebida.
- Gustavo foi apresentado minha história pra todo mundo no bar, que ouvia com curiosidade e perguntava alguns detalhes.
- Um senhor que disse adorar o Ceará me deu 10 reais pra ajudar na viagem, o dono do bar me pediu minha garrafa e encheu com água gelada. Eu fui me sentido abraçado por aquele lugar de forma que me senti em poucos lugares.
- Nos dirigimos ao ponto de ônibus e ficamos conversando um pouco mais até meu ônibus pra Salvador chegar, nos despedimos e segui viagem.
- Dentro do ônibus havia vaga ao lado de muitas moças bonitas, mas infelizmente elas não provavelmente não me dariam o que eu mais queria que era uma longa conversa.
- Sentei do lado de uma senhorinha que olhava a janela, ambulantes passavam constantemente e foi a primeira vez que vi isso em ônibus interurbano.
- Comecei então a falar com a senhora que me ensinou um remédio caseiro pra rinite mas que acabou descendo bem antes de Salvador.
- A rodoviária de Salvador é um ambiente muito diverso e movimentado que diferente da de Fortaleza parece ter algum tipo de segurança, mas não queria tomar riscos então pedi logo um Uber rumo ao hostel.
- Alguns dias atrás eu havia pego carona com a Renata e uma das coisas que ela me indicou foi ficar no Hostel Torre em Salvador pois eu iria adorar a dona Neuza, proprietária do local.
- Assim que chego já não sou recebido como um hóspede, mas como "o amigo de Renata".
- Coloco minhas coisas no quarto e desço pra fazer o check-in com dona Neusa, o processo que normalmente levaria menos de cinco minutos demora mais de uma hora.
- O motivo? Começamos a conversar e ela me conta toda a história do hostel, que no passado era um casarão que como praticamente toda Salvador pertencia a igreja católica, mas por ela ser muito ativa na diocese e amiga de muitos dos padres acabou ganhando como doação pois nos anos 80 ninguém queria comprar casarões pois o custo para reformar era absurdo.
- Esse casarão em específico ninguém queria por um motivo ainda mais particular: ele ficava na Avenida Carlos Gomes, a sarjeta de Salvador que reunia gays, lésbicas, putas e tudo que ficava à margem da sociedade nos anos 80.
- Ela já era mal falada por ser mãe solteira, quando se mudou pra essa rua foi que foi julgada e condenada pois pros frequentadores da diocese ela estava ganhando a vida aqui.
- Quem sabia que isso não era verdade eram os padres e seminaristas, pois eles próprios eram frequentadores discretos do lugar.
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