Quando alguém morre, vira estrelinha.
e isso é preocupante
Estamos apagando-as, de uma por uma
por medo.
Tudo bem, a luz afasta o medo.
Mas também afasta as estrelas
sem elas, não há mágica
sem mágica, não há por que viver
pra onde eu vou se não há mais estrelas?

Que horas são?

Há três pessoas a quem devo minha vida.
A primeira é minha mãe, que me deu à luz e me criou.
A segunda é meu tio Marcelo, que me salvou de um afogamento aos 9.
O terceiro é um senhor, que me perguntou se eu tinha horas na livraria Saraiva.

- Dez pras cinco - eu disse olhando no celular.
Mas enquanto fazia a visada, reparei no relógio que carregava em meu pulso.
Eu era realmente o homem do tempo naquele instante
e ainda assim estava perdido nele.

Foi quando percebi:
não se pergunta mais as horas
todos carregam o tempo nos seus bolsos
relógios atomicamente calibrados
ninguém se atrasa por acidente, por ter a hora errada
é intencional, por desprezo ao seu tempo
uma escolha!

Eu me questiono, esse texto será atemporal?
Acho que num futuro próximo será impossível entender.
Algumas perguntas ficaram estranhas com o passar do tempo
Só um viajante temporal perguntaria que em que ano estamos
alguém em coma perguntaria qual o mês
alguém desorientado por depressão ou luto perguntaria qual o dia
e vejo que as horas lentamente correm para se tornar uma pergunta do passado.

É cansativo viver na quarta dimensão
sonhar olhando o futuro enquanto se esconde do pretérito imperfeito.
Meus colegas contemporâneos dizem sonhar com a aposentadoria, não ter hora pra nada.
Que errôneo, acho que ninguém valoriza mais suas horas do que o aposentado
eles parecem ter plena ciência do peso de cada minuto, num relógio que em breve se encerrará.

Eu não sou de falar por aí, mas meu sonho mesmo é vencer o tempo
me despir de relógios, calendários
existir apenas no agora
minha maior ambição na vida
me tornar imortal
e então, finalmente, morrer.

Só que eu ainda não expliquei como aquele senhor salvou minha vida.
Um dia eu acampava sozinho num lugar vazio
surgiu um sujeito e me fitou a distância
ele tinha uma aparência esquisita, me olhava de forma esquisita
eu sei andar no mato, conheço quem anda no mato
aquele cara não andava no mato.
Quando ele reparou que eu tinha visto ele, acenou e eu acenei de volta.
Depois de um tempo a figura esquisita levantou de onde estava, caminhou a beira do rio e lavou seu rosto.
Virando pra mim, perguntou:
- Que horas são?
Ninguém pergunta as horas.
Ele queria me assaltar, mas antes queria ver se eu tinha algo que valesse a pena o esforço.
- Deixei meu celular em casa, mas olhando o sol eu acho que deve ser próximo de meio-dia.
Ele não agradeceu, saiu, não o vi mais.

Isso me fez pensar novamente no senhor
ele sem dúvidas salvou minha vida.
Hoje eu tenho uma teoria
acho que, na verdade, aquele era eu
do passado
após ter conseguido me livrar do tempo.

não me chateia o vento que corre
mesmo que as velas ele apague
sinto falta porém, das pequenas chamas
de sua luz, seu brilho
que agora moram num sonho

e me abandonam, no vazio do quarto
agora, um pouco mais frio
um pouco mais escuro

Era uma vez um escultor,
E com ele uma condição: era cego.
O mais incrível, porém, era seu sucesso.

Ele não havia nascido assim.
O sucesso veio depois.
Quanto à cegueira, foi acometido na infância.

Fascinado pela forma como percebia o mundo,
ele decidiu criar.
Retas, curvas, formas e vazios eram parte de suas obras.
Mas, sem dúvidas, seu aspecto favorito eram as texturas:
da aspereza do concreto, à uniformidade do vidro, ao frio do metal, ao conforto do tecido.
Pessoas, prédios, coisas, eram seus assuntos.

Quanto aos críticos, regozijavam-se com suas obras.
"Experiências únicas que levam o interlocutor a vislumbrar dimensões espectrais", diziam.
Ele, por outro lado, nunca as lia.

Na verdade, depois de um tempo, acabou mudo.
Uma vez, um amigo comentou com ele de forma empolgada
que, ao fechar os olhos, conseguia enxergar as verdadeiras formas emergindo do escuro através das texturas que seu tato sentia.
Não, não era isso.
Ele já havia enxergado antes; a ideia não era emergir formas do escuro,
porque não havia escuro.
A cegueira é o vazio.
As texturas que preenchem o vazio são completas por si só.
Não precisam que se imagine luz refletindo para formar algo.
Que diferença faz explicar?
Ele não vai entender.
Ninguém vai entender.

Não bastando ser incapaz de visualizar,
ele se percebeu um ser humano impossível de ser compreendido.
E, portanto, era loucura falar em um mundo de surdos.