Contemplação Amorosa Devolva o coração às coisas, veja: apropriar conquistas é injustiça, ata-nos ao que temos e a cobiça esquece ser com aquilo que almeja. Abandonar-se faz que a coisa esteja do jeito que ela é, não desperdiça num forçar que ela seja mestiça…

Que valor tem a vida tão ligeira,
tão ligeira se esgueira corriqueira
e em tantos pormenores nos perdemos?
No alvoroço confuso, que entendemos?

Tão ligeira, no tranco, surge inteira
e se consome à tempo na fogueira
até o lembrar das cinzas, ouviremos:
"És pó e para o pó retornaremos."

O acumular das cinzas não enganam:
ao fim da chama esperam, nos aguardam
sem pressa, pois ligeiro o tempo esvai.

Perdemos o valor e a vida cai
em passatempos lúdicos ou tortos...
no fim os mortos choram os seus mortos.

Última Palavra Terão-me por maldito por não ter nenhum dizer da moda do momento; não trago agrados, trago o mal sofrer, trago o instante e exalo o meu comento pois dói tanto sofrer não condoer, sequer dizer que eu vi o aviltamento arrebentar as portas, distorcer…

Última Palavra

Terão-me por maldito por não ter
nenhum dizer da moda do momento;
não trago agrados, trago o mal sofrer,
trago o instante e exalo o meu comento

pois dói tanto sofrer não condoer,
sequer dizer que eu vi o aviltamento
arrebentar as portas, distorcer
a ordem pelo puro detrimento.

Não é conveniente, mas eu sei:
o mundo se dissolve enquanto hei
de assistir impassível tal desordem.

Eu sei... por isso, ainda que descordem,
resta este alcance pobre dos meus braços
catando o que puder dos estilhaços.

Impulso de Navegante

Evadir de Sísifo
na morte de meu trabalho,
ignorar Narciso,
e não olhar Eurídice
ou agitações de Prometeu.

Vou remando, abarcando;
cortando águas,
nadando no revés das águas -
cada respiração é meu último suspiro.

Minha barca é minha ausência,
estaca em prumo na coluna
que firma meu corpo ereto
e me confirma no oceano,
reintegrando-me nas entregas
ao me desintegrar as ilusões.

Rapa de tacho,
meu barco é o arco vazio que me cabe,
vaso que comporta o conteúdo
de um corpo impresso na madeira
cuja sina me tornou próximo às coisas.

Remar, porque parar estanca.
Continuar contra a corrente:
a resistência da água é meu impulso.

Renasço nas águas em cada dia
porque navego como quem morre.

Era a poesia antes da palavra;
o poeta somente faz visita
à morada expressiva e ele hesita
dizer, pois tudo diz quando ele lavra

o significado que escalavra.
A palavra é apenas parasita:
sedimento que assim se deposita...
da poesia das coisas, descalavra.

No princípio, a palavra nada fala:
ela esmaece e deixa a cerimônia,
o poema é quem é o anfitrião.

E aqui estou, cantando, qual vassala
que não esquece desde Babilônia
as cantigas que escuta de Sião.

Palavras nunca mudam A Palavra

A palavra não muda quem sentiu
haver maior sentido um fidedigno
senso que ouviu dizer e se incutiu
de buscar o que ouviu e achou tão digno.

Sabe dizer quem muito já ouviu:
a palavra é veículo do signo,
mostrando na omissão a quem não viu
(São as coisas tornadas num designo)

E os homens tem desígnio em palavrório:
Dizem criar, palavras de mentira
que o sentido se perde no ilusório.

Mas não mudam o Verbo que nos mira;
E quem O ouviu em meio ao palanfrório
Bendito é nos ditames que Ele inspira.

Não somente o ter raro é inestimável:
a aurora nasce sempre indiferente
ao que vê, ao que nunca vê à frente
os lumes do visível e do invisível.

Tão somente o fulgor se faz fiável
nos cegos cuja fé insuficiente
estão a ver e não ver a luz presente,
desconhecendo à luz sua fonte estável.

Lapidam seus diamantes, os viciados,
crendo reter da antiga aurora os brilhos
despedidos no fusco sol poente.

Vaidade das vaidades... somos tolos.
Além da crosta, cresta o sol a todos
que aceitam enxergar o belo ardente.